Crédito da imagem: http://hgpenter.blogspot.com
Pesquisando sobre turismo, encontrei esta publicação do Instituto Romã:
Sentido da Viagem
Hoje em dia é possível viajar para qualquer parte do planeta. Regiões desérticas,
vales e montanhas mais escondidos da geografia são hoje acessíveis aos viajantes bem
dispostos. Vilarejos onde comunidades ainda vivem em seus costumes tradicionais podem ser visitadas.
Os meios de transporte e de comunicação tornaram possível não só o contato direto
com as mais variadas regiões como também possibilitaram a construção da própria idéia de planeta, isto é, a idéia de que todos nós – por mais diferentes que possamos ser, indivíduos e culturas – somos tripulantes dessa mesma espaçonave.
Viajantes sempre existiram: aventureiros que saíam em busca de novas terras, novos
recursos, novas experiências, novas trocas. No entanto, houve uma época na historia da humanidade em que as viagens se tornaram o meio a partir do qual toda a concepção de mundo vigente se transformou completamente: foi a época dos descobrimentos. Segundo Edgar Morin e Anne B. Kern(1), foi a partir de 1992 (?) que as jovens nações européias, ao partirem para a descoberta de novos territórios, suscitaram o que hoje chamamos de Era Planetária; suscitaram o que hoje chamamos de Tempos Modernos.
Esses novos tempos são marcados pela descoberta de que a Terra é só um planeta (e
não é mais o centro do cosmos, como se acreditava) e pela comunicação entre as diferentes partes desse planeta. As viagens provocaram, portanto, uma profunda transformação das visões de mundo das mais variadas civilizações então existentes. Nem a China nem a Índia – que na época eram as mais importantes civilizações do mundo – nem os impérios Inca e Azteca – que foram violentamente subjugados, apesar de serem muito mais desenvolvidos que as nações invasoras – deixaram de incorporar as profundas transformações trazidas pelo contato com os estrangeiros que abarcavam em suas terras.
Essa nova visão de mundo foi se expandindo pouco a pouco por todo o globo, ao
mesmo tempo em que a ciência e a técnica foram se tornando referências fundamentais dessa nova civilização. Hoje a sociedade moderna se vê de um lado globalizando as suas economias e suas culturas, e de outro lado totalmente compartimentalizada, dificultando a comunicação entre as partes que a formam. As infinitas possibilidades e interconexões convivem com a ausência de linguagem comum.
A devastação do planeta e o esgotamento dos recursos naturais são preocupações de
alguns setores, apesar de afetarem a todos. Os desequilíbrios sociais também afetam a todos: a violência, o stress, a miséria e a fome.
Há indícios que os desequilíbrios recentes são indicadores do final de uma era,
assim como aconteceu com tantas civilizações que ocuparam e se expandiram pelo planeta antes de nós. “(...) a crise que hoje estamos enfrentando não é uma crise qualquer, mas uma grande fase de transição, como as que ocorreram em ciclos anteriores da história humana. (...)
Eles podem ter sido menos de meia dúzia em toda a história da civilização ocidental, entre elas o surgimento da agricultura no Neolítico, a ascensão do cristianismo na época da queda do Império Romano e a transição da Idade Média para a Idade Científica (2)”.
Se as viagens foram tão importantes e estão na origem da construção dessa fase da
história que estamos encerrando, qual é agora o seu papel na fase atual de transição, construção de novos valores e na solidificação das bases desses novos tempos que hoje estão se delineando?
Tal como nas demais atividades humanas, o turismo hoje se desenvolve, a meu ver,
por dois diferentes caminhos:
a) a viagem convencional, em que o modelo de vida urbano é transferido para o
local visitado, transformando os espaços turísticos em áreas muito similares aos locais de origem dos visitantes. A multiplicação das facilidades para viajar, a garantia de segurança e de conforto, se de um lado possibilitou o contato com qualquer parte do mundo, de outro vem levando o visitante a uma experiência cada vez mais monótona, diluída e pré-fabricada.
Embebidos de sua própria cultura, espalham pelo globo sua experiência de dominação, de indiferença, de descompromisso. O viajante tem se tornado cada vez mais passivo, evita a experiência, o contato com manifestações pré-organizadas e sem autenticidade.
Essas características são observáveis em qualquer tipo de localidade turística, seja urbana, rural, e mesmo em áreas naturais.
b) a viagem encarada como uma oportunidade de vivência, que propicia transformações internas profundas nos indivíduos; ela propicia experiências novas por poder se colocar em confronto com o outro, vivenciar o incomum, reconhecer-se com a diferença, ampliando assim o conhecimento que cada um pode ter de si mesmo. São viagens que situam, acima de tudo, o respeito e o interesse por outras maneiras de pensar, fazendo com que essa diversidade seja a base para a aproximação de outros povos que vivem hoje sua vida à sua margem ou apesar de nós. É uma maneira de viajar que nos leva a refletir sobre as diferenças e que busca compreender os fundamentos dessa diferença.
Para finalizar, gostaria de enfatizar a importância do desenvolvimento desse segundo perfil de viagem, como base e um dos caminhos possíveis para a estruturação de uma sociedade mais harmônica e da vida com mais qualidade. Nessas experiências, a relação com o tempo e o espaço são recriadas e as relações com o diferente são transformadas de forma a fazer renascer o germe do respeito, do interesse e da preservação da dignidade tanto do visitante como do visitado. Se o que estamos buscando é modificar o paradigma de sociedade sob o qual hoje vivemos, é necessário proporcionar um processo de vivência onde essas transformações possam ser experimentadas tanto nas relações de cada um consigo mesmo, como nas experimentações no contato com o outro e com o meio que o cerca. Há um outro mundo a ser descoberto quando o percurso é feito com a intenção da busca, da experiência, e não da conquista e da dominação. Fazendo isso, seguimos o conselho de Michel Serres: (3)
"Parte, deixa o ninho para se enriquecer com os costumes de outros lugares, aí ouvir palavras nunca antes proferidas. Expõe o corpo ao vento e à chuva porque, para ser verdadeiramente educado, é preciso se expor ao outro, esposar a alteridade e renascer mestiço."
Fonte: “Sentido da viagem”, Arte e Ciência - Descoberta/Descobrimentos - Terra Brasilis/Elza Ajzenberg (coord.) São Paulo: ECA/USP, 1999, Volume II
Autora: Rita Mendonça
1 Edgar Morin e Anne Brigitte Kern, Terra Pátria, Barcelona: Kairós, 1993.
2 Frijot Capra, O Ponto de Mutação, São Paulo: Cultix, 1983.
3 Michel Serres, Filosofia mestiça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
Conceição